O caminho de Santiago

O Caminho Português de Santiago ou Caminho Central Português é o segundo itinerário pedestre mais utilizado pelos peregrinos para chegar a Santiago de Compostela, Galiza, Espanha, sendo o primeiro o tão famoso Caminho Francês que percorre todo o norte de Espanha até aos Pirenéus. Estamos perante rotas milenares seguidas por milhões de peregrinos que desde o início do século IX, quando foi descoberto o sepulcro do Apóstolo Santiago o Maior, fazem estes caminhos a pé e ultimamente de bicicleta.

Santiago de Compostela, na Galiza, é desde a idade média o segundo oráculo mais importante para o cristianismo, a seguir à cidade Santa de Jerusalém.

Conta a história que depois da morte de Jesus, o apóstolo São Tiago foi pregar para a Galiza, o lado mais ocidental de Espanha, à data província do império romano. No seu regresso a Jerusalém veio a ser preso e depois decapitado. Todavia, dois de seus discípulos conseguiram recolher o corpo e, numa barca, trouxeram-no de volta para Compostela onde o sepultaram, secretamente, num denso bosque. 

Ora, “… em virtude da revelação divina ao ermitão Pelayo, das supostas relíquias do Apóstolo Santiago, cerca do ano 814, mais fama havia de congraçar além Pirenéus. Redigida em 1077, a Concórdia de Antealtares é o primeiro relato conservado sobre as circunstâncias maravilhosas em que ocorreu o achado das relíquias, assinaladas por persistente chuva de estrelas e por um forte resplendor. Fazendo jus a tais tradições venerandas, o Liber Sancti Jacobi refere duas pretensas peregrinações de Carlos Magno a Compostela, seguindo um sonho em que Santiago lhe explica o simbolismo da Via Láctea, urgindo-o a visitar o seu sepulcro como peregrino. A partir do século XII, com o patrocínio da Ordem de Cluny, Santiago de Compostela tornar-se-ia o epicentro da romagem para onde convergia uma imensa rede viária que se estendeu a toda a Europa, fomentando uma unidade cultural sem precedentes durante a Idade Média.” 1

 

Certos estamos que o fim de qualquer peregrinação ou caminho será o cumprimento de promessas, a remição dos pecados, o conhecimento de outras terras ou, simplesmente, a singela curiosidade humana e bem-estar espiritual.

Ou seja, o misticismo e a fé foram valores de elevada grandeza no quotidiano do homem medieval e também o são no atual.

Desde tempos de antanho que na nossa região cruzavam-se numerosas vias romanas, depois estradas reais e nacionais.

Conta-nos a história que o caminho de peregrinação ou estrada real, ou estrada romana, era engrandecido com construções de apoio aos peregrinos como albergarias, hospedarias e hospitais. Que infraestruturas ou testemunhos temos, ainda, no nosso território do Caminho Central de Santiago?

O designado caminho Central de Santiago, passa por Santarém, Golegã, Cardiga, Vila Nova da Barquinha, Tomar, Ferreira do Zêzere e segue para Coimbra.

No nosso território o atual caminho era uma das principais vias de comunicação, assente sobre as antigas estradas romanas, sendo percorrido por gente simples, desconhecida, santos e reis.

As localidades da Atalaia e de Tancos, em Vila Nova da Barquinha, pela sua magnífica situação geográfica, eram sítio de passagem para a capital do reino (Scalabis–Sellium, Santarém-Tomar) e para o além Tejo, sendo atravessadas pela via Conímbriga-Mérida (Coimbra-Mérida), estradas muito importantes no fluxo de pessoas e mercadorias.

Atesta a Carta de Privilégios de Atalaia de 18 de fevereiro de 1303, concedida pelo rei D. Dinis, com a criação de uma póvoa no “ lugar onde chamam Atalaia no caminho …” 2


A primeira infraestrutura de apoio conhecida para o caminho de Santiago seria a ermida da Nossa Senhora do Reclamador (Rocamadour), na Barquinha, pequeno espaço de liturgia e de meditação e albergue de peregrinos.

A primeira referência à ermida tem data do reinado de Dom Manuel e diz respeito à sua administração “…das capellas que se acharão na leitura D’El Rei D. Manuel”. Inventário dos Bens eclesiásticos pertencentes ao padroado real ordenado em julho de 1573 por D. Sebastião. 3

Outrossim, na Atalaia, Barquinha, pelos inquéritos paroquiais ficamos a saber que tinha casa de Misericórdia, anexo com Hospital e albergaria, local de abrigo e hospedagem, para os caminhantes e casa para todo o religioso que vai de passagem, para poder pernoitar. Seria esta a segunda infraestrutura que existia nos primórdios da nossa nacionalidade.

Recordo que para além destes albergues, o capítulo XI do Livro V do Codex Calixtinus determinava “a obrigação de acolher os peregrinos de Santiago, fossem eles ricos ou pobres” 4 o que indicia que muitos deles pudessem ficar acomodados em propriedades privadas.

Apesar de, na atualidade, já não ser possível percorrer o caminho ou estrada real (a construção de novas vias e de habitações apagou ou ocupou alguns espaços), hoje ainda podemos contemplar os caminheiros de Santiago que fazem, basicamente, o mesmo percurso medieval.

Assinatura de protocolo – Igreja Matriz de Atalaia – Foto arquivo Municipal da Barquinha

Cientes que o turismo religioso se assume como sendo um produto estratégico para o Centro de Portugal os Municípios de Vila Nova da Barquinha, Tomar e Ferreira do Zêzere e a entidade regional de Turismo do Centro de Portugal decidiram sinalizar esta rota dentro da área geográfica de cada concelho, garantindo a uniformidade do mesmo, com o objetivo de colmatar a ausência de informações ou sinalização, bem como apoiar os peregrinos, facilitando a sua orientação, deslocação e comodidade. Este trabalho contou com a prestimosa colaboração da Associação de Peregrinos Via Lusitana.

No caminho têm agora os peregrinos informação bastante sobre os territórios, ofertas culturais e turísticas, alojamento, etc.

Foram criadas várias etapas nos respetivos concelhos. No concelho de Vila Nova da Barquinha foram criadas 3 etapas:

Etapa 1 – (para peregrinos vindos Lisboa/ Golegã, São Caetano e Quinta da Cardiga). O caminho inicia-se no lugar do Pedregoso, seguindo para a Quinta da Lameira, onde existe um antigo solar, até à Rua Salgueiro Maia.

Pedregoso [Foto de Fernando Freire]

Neste percurso podemos vislumbrar a Vila ao longe. Um local, onde outrora, existiram excelentes ligações com o rio, porto fluvial importante de cuja memória restam belos edifícios do século XIX e a toponímia das suas ruas que evocam os tempos da navegabilidade do Tejo. Passamos de uma paisagem agrícola, ocupada por olival, culturas temporárias de sequeiro ou regadio, e pastagens naturais, para um aglomerado populacional contínuo com pequenas hortas familiares.


Curiosidades nesta etapa – O Pedregoso foi um lugar em tempos conhecido pela arte da cestaria. Alguns arqueológos e historiadores acreditam que neste local poderá ter existido uma cidade romana (Morón ?), isto com base na descoberta de vestígios arqueológicos romanos (que indiciam a existência de vila ou cidade junto da quinta da Lameira), sinais que se encontram guardados no Centro de Interpretação de Arqueologia do Alto Ribatejo, em Vila Nova da Barquinha. Em ambos os lados dos caminhos, encontramos a presença de oliveiras que se destacam pela sua idade multissecular, o seu porte invulgar, o desenho (tronco contorcido) e interesse histórico.


Etapa 2 – O percurso segue da Rua Salgueiro Maia, em direção à Moita Norte, localidade com vasta tradição na indústria da pirotecnia. Apesar de não ser uma povoação ribeirinha teve grande importância porque aqui residiam muitos marítimos, dada a situação geográfica sobranceira ao rio. Percorremos a Rua do Ribeiro da Maia, Rua da Escola Nova e chegamos à Rotunda dos Fogueteiros, onde se localiza a Junta de Freguesia de Vila Nova da Barquinha. Na rotunda seguimos pela 2ª saída, Rua D. Afonso Henriques, em direção à Atalaia.

Curiosidades desta etapa – Foi em Moita do Norte que ocorreu um dos mais trágicos acontecimentos das invasões francesas, durante a 3.ª invasão de Massena, que fixou quartel general em Torres Novas. Segundo investigação de Júlio Sousa e Costa, as tropas francesas profanaram o templo local para realizar um baile. Os soldados foram então buscar as raparigas da Moita, usando da força. Este ato revoltou a população que procurou vingar-se, criando as célebres guerrilhas, nas quais ficou afamado o seu líder “Madrugo”.


Etapa 3 – No final da Rua D. Afonso Henriques prosseguimos para a Rua Paulino José Correia, em direção à Junta de Freguesia da Atalaia. Nesse entroncamento seguimos à direita pela N110, passando pouco depois na Igreja Matriz da Atalaia, Monumento Nacional, erguido em 1528.

Continuamos pela N110 até à saída da Atalaia onde viramos à direita para o caminho florestal, seguindo até ao Vale do Grou e travessia da Ribeira de Tancos, limite do concelho de Vila Nova da Barquinha.

Projeto Artejo – Vila Nova da Barquinha., Vhils – Fotografia de Pérsio Basso

Curiosidades desta etapa – Na Rua Paulino José Correia com a Rua do Rossio, depara-se com a figura imponente de um homem, curvado, a moldar um vaso de barro, apoiado numa roda de olaria. Trata-se da intervenção de Alexandre Farto, conhecido como Vhils. A fotografia que serviu a Vhils para fazer esta obra, cuja técnica de picar parede é já a sua imagem de marca, é da autoria do fotógrafo Pérsio Basso. O retratado chama-se João Caetano e era um dos três irmãos que geriam uma empresa familiar de olaria, a última a resistir na Atalaia. Neste percurso podemos, também, vislumbrar a Igreja Matriz de Atalaia, um dos mais belos exemplares da arquitetura renascentista em Portugal, erguida com a participação de João de Ruão e João de Castilho, coautores do Mosteiro do Jerónimos, Convento de Cristo e Mosteiro da Serra do Pilar. Possui no seu interior azulejos policromados amarelos e azuis, de grande efeito artístico do século XVII. Este edifício do século XVI é considerado Monumento Nacional desde 1926. À saída da Atalaia, do lado direito, pode-se observar a Encosta do Telégrafo, elevação digna de ser subida, por permitir apreciar uma paisagem ímpar sobre o rio Tejo (donde se vislumbra o castelo da Cardiga, Santarém e Ourém), lezíria e a oeste, denotando-se o relevo com especial enfoque na Serra de Aire e Candeeiros, e os diferentes usos e ocupações do solo. Na referida encosta o peregrino poderá repousar e beber água fresca na fonte.

Fonte em Atalaia – Fotografia de Arlindo Homem

Nas diferentes etapas o selo do caminho de Santiago pode ser obtido quer nos hotéis e em equipamentos de turismo em espaço rural, quer nas Juntas de Freguesia de Vila Nova da Barquinha e Atalaia, ou no Café Monteiro, Atalaia.

Credencial do peregrino

Como atrás referi, todo o caminho nos concelhos da Barquinha, Tomar e Ferreira do Zêzere, foi recentemente marcado com placas toponímicas de percurso e informações, proporcionando condições aos peregrinos para alcançarem o túmulo de Santiago, lenitivo para a salvação das suas almas ou paz de espírito neste mundo, onde tudo parece girar em torno do binómio custo-benefício e onde os atos de barbárie e de indiferença são cada vez mais recorrentes.

Carimbo

Certos estamos que os valores dos números, e da economia, são relevantes, pois o ser humano tem necessidades materiais, mas importa garantir o direito a uma cultura correspondente à dignidade humana, sem distinção de raça, sexo, nação, religião ou situação social»5.

Devemos evidenciar na sociedade atual a imagem visual crescentemente dominante e enquadrá-la na multiplicidade sensorial crítica e na complexidade conceptual histórica bem como efetivar a partilha de pensamentos num diálogo de tolerância de religiões e civilizações tão separado, infelizmente, nos dias de hoje.

“Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar”6

Texto por Fernando Freire

1 Gandra, Manuel J., Roteiro da exposição “Santoral e Liturgia Templárias à roda do ano”, Câmara Municipal de Vila Nova da Barquinha. Outubro 2019

2 Chancelaria de D. Dinis, Liv III, f.18, 2

3 Fontes Documentais Portuguesas III, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1971

4  Marques, José. Revista da Faculdade de Letras, História – Os Santos dos Caminhos Portugueses, 2006.

5  CONCÍLIO VATICANO II, const. past. Gaudium et Spes, n.º 60, AAS 58, 1966

6 Antonio Machado, poeta espanhol, 1875-1939